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Literatura Brasileira: Entrevista com o escritor Felipe Nomura

Foto do escritor: Thiarles SosiThiarles Sosi

Atualizado: 30 de dez. de 2024


Imagem fotográfica: Felipe Nomura (2024)

Série de entrevistas: As Letras Brasileiras do Século XXI

Em nossa segunda entrevista publicada, queremos trazer o jovem escritor Felipe Nomura, um sansei que redescobriu o Brasil ao voltar do Japão, e ama a literatura brasileira. Ele falará para nós um pouco de sua vida e experiência que passou por extremos da juventude e do choque cultural.


Nota: As opiniões e análises aqui emitidas não necessariamente correspondem a opiniões e análises da Casa Editorial da ENA ou do entrevistador, mas são de cunho pessoal do entrevistado. Agradecemos a compreensão e boa leitura!


"Acredito que não se escolhe ser escritor mas se é escolhido. É como as Moradas de Santa Teresa, até certo ponto é esforço próprio, mas tem um ponto, na unitiva, que Deus lhe puxa com seu cordão de ouro".

Literatura Brasileira: Entrevista com o escritor Felipe Nomura

Thiarles Soares (TS): Felipe Nomura, é um prazer tê-lo conosco para nossa entrevista. Queremos conhecer escritores e poetas que se dedicando à arte da palavra, enriquecem a cultura brasileira. Conte-nos mais sobre você, sua vida e trajetória.


Felipe Nomura (FN): Nasci em Itajaí, mas passei minha infância (dos três aos doze anos) no Japão. Sou sansei. Tive que fazer três cirurgias no ouvido por causa de um tumor teimoso. Quando voltei ao Brasil, talvez pelo choque cultural, me tornei extremamente rebelde. Talvez o excesso de liberdade e o fácil acesso às drogas tenham me convencido de que a vida era puro hedonismo. Tive muitas experiências com psicodélicos, até o ponto em que enlouqueci e me tornei andarilho por alguns poucos dias. Fui resgatado pela família e, observando minha vida no período de internamento, tornei-me inimigo do mundo que me usou e cuspiu. Converti-me ao catolicismo no dia de Santo Agostinho e, pensando que nada mais faria sentido neste mundo, busquei o vocacional carmelita, onde permaneci em um processo de dois anos. Fui "expulso" por causa de delírios e alucinações religiosas (após meu episódio de enlouquecimento, fui diagnosticado com bipolaridade tipo 1). Apaixonei-me e casei com uma vocacionada ao carmelo descalço. Tive um filho, que se chama Vicente José Pio. Trabalho em uma loja de materiais de construção, faço curso de Letras – Português e lancei um livro intitulado Sacrário Vazio.


TS: Qual fase de sua vida enxerga hoje com maior interesse.


FN: Meu amor pela minha esposa, meu filho, que em breve fará 1 ano. A faculdade que logo termina e vai me proporcionar melhores oportunidades de vida. A fase atual, por mais monótona que seja, tem sido a mais agradável. Mas espero que melhore. A juventude que tive antes do casamento é marcante, cheia de altos e baixos (muito mais baixos), e eu não me arrependo, mas não retornaria a ela. Os alucinógenos me fizeram um mal tremendo intelectualmente, e a doença da bipolaridade pode levar a uma certa demência com seus surtos consecutivos. Hoje, prefiro viver de forma pacata e tranquila, sem muitos estímulos. Não gosto de jogos, filmes, séries, YouTube e TikTok... No meu tempo livre, só faço leituras e fico com a família. Se pudesse pedir algo, pediria mais tempo para mim, o que de fato não tenho, não pela família, mas principalmente pelo trabalho que toma boa parte da minha vida atual. A escrita se torna algo bem secundário, já que além de não dar dinheiro, prestigio ou visibilidade, dá bastante trabalho e chateação.


TS: Em que momento se decidiu ser escritor?


FN: Comecei fascinado pelos Beatles na pré-adolescência. Uma beatlemania tardia. Quando soube que mataram o John Lennon por causa de um livro do Sallinger, quis ler o livro pra ver se entendia que mensagem secreta o assassino encontrou. Não encontrei a mensagem, nem quis matar ninguém, mas Apanhador no Campo de Centeio foi minha porta de entrada. Logo me interessei pela literatura hippie, que teve como precursores (como tudo que ocorre na realidade, acontece antes no pioneirismo da literatura) os beats. Kerouac, Burroughs, Ginsberg, ferliguetti, Corso... Um dia, no auge da minha fase hippie, um amigo teve ideia de fazer um curta e pediu pra eu escrever o roteiro. Já que estava de castigo por ter sido pego fumando maconha, aceitei a proposta e escrevi meu primeiro livro "cotidianus", uma cópia barata de Lourenço Mutarelli. Nunca deixou de ser um projeto, mas gostei e digo que fui movido inicialmente pelo prazer de escrever acima de qualquer coisa. Por isso sou uma negação quando a escrita começa a se tornar trabalho, algo sério demais e técnico, uma chatice absurda que mata a arte. Até digo que tentei me adaptar a um certo formalismo, mas como espírito livre, prefiro manter-me como tal. Reviso muito, às vezes seis ou sete vezes, mas na pura intuição. Estudei, claro! Mas não fico lembrando das regras de escrita no processo. Prefiro deixar correr a pena. Acredito que não se escolhe ser escritor mas se é escolhido. É como as Moradas de Santa Teresa, até certo ponto é esforço próprio, mas tem um ponto, na unitiva, que Deus lhe puxa com seu cordão de ouro. Como pescaria. Se eu pudesse escolher, seria algo muito mais lucrativo, sendo sincero. E não é ser materialista (mas sendo um pouco), mas escrever é frustrante. Muita gente não entende o que você tá fazendo, alguns te esnobam. No final é o eterno 0x0 que não agrada ninguém. Não faço pra mudar a realidade, nem mesmo a minha. Costumo pensar mais no microcosmo do escritor do que no macro. Não tenho saco pra marketing pessoal, não tenho padrinhos, não sou herdeiro e também não sou um intelectual cheio de pompa. Já fui na TV pra ser entrevistado, programa de rádio, podcasts... Tudo mídia furada, mas, pelo menos, me diverti bastante falando. Não costumam querer me ouvir, sou bem quieto no geral. A literatura é a única que quer me ouvir e nela posso ser livre e sincero. Por que tornar isso um trabalho? Ela se oferece gratuitamente e com a mesma gratuidade você deve se doar a ela. É como Deus. Deus quer que o amemos gratuitamente, não por seus atributos e bênçãos, mas pelo que Ele é de fato. E você é livre pra amar ou não amar. Nunca pensei que ser escritor traria fama, dinheiro e prestígio ou reconhecimento. Mas esperava fazer mais amigos, como nerds falando de Star Wars. Não fui bom músico e nem bom desenhista, me sobrou as letras e a sinceridade dessa arte. É uma pena que poucos conseguem compreender o que quero.


TS:Acha que ainda há espaço para a escrita literária no Brasil?


FN: Não. Tem alguns escritores bons contemporâneos. Gosto do Julian Fuks, da Carla Madeira... essa literatura muito intimista e biográfica. Tem uma pegada bem sincera e melancólica, e eu gosto disso. Mesmo você me falando que a literatura brasileira é triste. Antônio Cândido já falava que ela era de segunda mão, mas se não for a gente para amá-la, quem irá? Eu amo a literatura brasileira, eu só leio brasileiros há uns três anos. Sempre que quero escrever, leio tudo que quero que me influencie. Autran Dourado, Octávio de Faria e Érico Veríssimo foram muito influentes pro meu primeiro livro. Agora quero escrever algo na pegada do realismo fantástico, pois estou fascinado por Campos de Carvalho, José J. Veiga, Murilo Rubião... e assim vai. Literatura é "cópia mas não faz igual" e temos que seguir olhando pro passado da nossa literatura, pois ali está nossa voz e identidade. Somos essa literatura pessimista, melancólica, ácida, irônica, debochada, malandra e simplória. E fazemos isso muito bem. O problema é que a literatura brasileira se esquece do seu lugar, quer ser sofisticada igual a da Europa. Quer ser descolada como a americana e seu casaco de atleta, seu marlboro e sua namorada líder de torcida. Sou mais nós, uma literatura crua, pesada, engraçada e às vezes bizarra. Quando você fala de espaço, penso que hoje qualquer um pode publicar um livro, mas não faz diferença. Ninguém lê nesse país, ninguém te conhece e por vezes você é até um daqueles escritores tiozões toscos que compartilham seus livros de poesias de capas feias no grupo do Facebook. Sem dinheiro você não é nada nesse país, seja qual for a profissão ou vocação. Por que escritor seria diferente?


TS: Você já disse que não era católico desde sempre. Quando se deu seu encontro com o Catolicismo?


FN: Meu encontro com o catolicismo foi depois da adolescência, quando saí do internamento domiciliar. Lembro que um amigo das drogas tinha virado católico e foi o único que me procurou nesse período. Hoje esse amigo é ateu e trotskysta. Enfim... ele me levou pra uma confissão geral que coincidentemente era dia de Santo Agostinho. O padre me falou para ler confissões e comprei na loja ao lado da igreja. Aquilo abriu minha mente, tanto por ser quase que uma narrativa quase literária, quanto a parte filosófica propriamente dita. Depois fui estudando as vidas dos Santos e me fascinando ainda mais. Ainda vivo numa corda bamba entre considerar a mística uma loucura ou um milagre, mas decidi viver essa religião e é uma das poucas decisões que não volto atrás. Vivo muitas crises existenciais, crises de fé, decaídas ao pecado, mas considero isso parte de ter religião. É ser contrariado e mesmo assim seguir firme nela. Se eu pudesse dar um conselho é: se for pra ser católico pela metade, não seja. Se você tá indo pra igreja pra ser madrinha ou padrinho apenas porque quer ter um afilhado e não tem intenção de educar na fé, não faça! Religião é coisa séria e os contratos com Deus são escritos a caneta permanente. Ele entende falhas, mas burrice e teimosia é demais! Gosto muito dos carmelitas e cartuxos. Às vezes penso como minha vida seria nesse meio. Talvez eu tivesse muito mais paz e reserva, mas Deus quis me dar outro destino: Cuidar da minha esposa e filho(s). Nessa jornada, vou escrevendo uma coisa ou outra. Sem querer ser panfletário do catolicismo, mas escrevo o que conheço, como diz a frase batida de Ortega Y Gasset, sou eu e minhas circunstâncias. Não o li, mas acho que vi essa frase no para-choque de um caminhão (risos).

  1. TS: Você se entende como advindo de um movimento político-cultural da “nova direita” brasileira dos últimos anos? Conte-nos um pouco de sua trajetória nas ideias públicas.

FN: Nem direita e nem esquerda. Sou como Campos de Carvalho. Sou bipolar, logo, concordo e discordo de tudo que ouvi dos dois lados. Meus amigos mais íntimos, um é trotskyista e o outro olavete. Ambos falam demais e eu não tenho interesse nenhum em saber. Prefiro a ignorância política. Acho que a "nova direita" já nasceu morta. O que a direita tem de chata, a esquerda tem de ridícula. Não me interessa em absoluto me vincular a esses títulos! E por isso, vou ser esquecido como um grão de poeira. Não me vendo, não chupo ovo de ninguém. Já subi em palanque político de carreata e me arrependo demais. Meu papo não é esse não! E não acho que se deve escolher lado não. Seja autêntico. Não se formate a isso, por mais que isso te defina como um ignorante. Nenhum dos lados me ajuda em nada literariamente e nem nos corres do dia-a-dia. Talvez eu seja um “fudido” por não lutar pelos trabalhadores ou talvez eu seja um manipulado pela esquerda mundial que faz com que eu não veja que beleza é a direita... nesse jogo de narrativas, eu acho que os dois tão certos no mesmo nível que estão errados. Sou muito louco pra ter juízo e os caras ainda querem me cobrar lógica?


Thiarles Soares: O que mais te marcou como ser humano e escritor até os dias de hoje?


Felipe Nomura: No lançamento do meu primeiro livro, Sacrário Vazio, foram poucos amigos, muitos familiares e nenhum público. Eu nunca fiquei tão feliz como nesse momento. Vi quem está do seu lado de fato, apoiando. O resto? Não importa. Eu me esforço muito pra escrever, trabalho numa escala 6x1, tenho filho pequeno, um salário merreca... Naquele momento eu vi que eu não precisava de mais nada, já tinha o que precisava ter. No começo, acho que pensava demais que algo ia acontecer. Mas nada aconteceu.Continuo trabalhando muito, fumando cigarros, tendo poucos amigos, falando pouco, amando minha esposa, criando meu filho... vida que segue.


TS: Quando você voltou para o Brasil, certamente não se lembrava quase nada de como era. Como foi este choque cultural?


FN: Quando voltei do Japão me encontrei com um povo extremamente falso, barulhento e cordial. Os três ao mesmo tempo. Longe do silêncio do Japão, me vi no caos urbano brasileiro onde fezes de cachorro crescem como grama, onde homens levam carroças nas costas no trânsito ao lado de carros da moda caríssimos, onde tem tênis em fios de postes e as pessoas adoram academia e odeiam modéstia e castidade. É um país absurdo, igual a própria literatura. Eu me senti um estrangeiro, de fato era, e me sinto até hoje um estrangeiro. Por isso de tempos em tempos faço incursão na literatura japonesa com kawabata, mishima, endo, dazai... o japonês tem um ritmo diferente, mais lento, mais cíclico. Ele precisa de ordem externa pra viver sua ordem interna. São quietos, tímidos, introvertidos, educados. Sou muito mais oriental que ocidental. Minha infância foi silenciosa, com muito contato com a natureza japonesa, falando pouco, não tendo que guerrear na extravagância para chamar a atenção ou fugir de hostilidades diárias. Aqui no Brasil se você é reservado é engolido pela sociedade, pelo chefe, pelos amigos e até algumas esposas (graças a Deus não a minha). O japonês é um solitário, um isolado e ele respeita muito essa privacidade. É difícil viver isso num país onde as pessoas falam muito apenas para exercitar a língua, banalidades e vaidades. Eu sou pessimista sobre o Brasil, mas sou otimista sobre a literatura do país. Acho que o escritor que se forja no Brasil tem a capacidade de fugir dessa condição absurda.


TS: Você disse que foi andarilho por alguns dias. Como entrou e saiu desta situação?


FN: Um dia eu vi um homem vestido de colorido, com um saco nas costas e um cachorro pulando aos pés. Ele usava um chapéu engraçado. Aquilo pra mim era um sinal do universo que representava a carta zero do tarot (o louco). E então eu decidi encarnar o arquétipo e ser louco de fato pois a vida havia se tornado absurda na época e muitas vezes pensei em desistir. Você é obrigado a viver, essa é a cruz, a condenação que você teve ao nascer. E toda a manutenção da vida é exaustiva! Alguns diriam que eu tive um surto psicotico por stress. Tava com problemas sérios de drogas, não dormia direito, trabalhava em dois empregos e estudava e praticava ocultismo. Junte isso a uma doença  psiquiátrica ainda não diagnosticada. Fui para a rua como um grito de socorro e libertação. Não queria mais me identificar com nada, nem comigo mesmo. Queria desaparecer, ver lugares bonitos e morrer de fome. Durou poucos dias, não sei ao certo. Estava muito perturbado, ouvindo vozes demoníacas, vendo anjos me guiando, sincronicidades, mensagens codificadas. Muitas vezes me pegava conversando uns papos surreais com outros magistas.  Vai parecer engraçado, mas minha vida se assemelhava muito ao diário de um mago de Paulo Coelho. As pessoas mais aleatórias possíveis apareciam no meu caminho como se eu tivesse as invocado, falando de magia e esoterismo, compartilhando comida e até abrigo (uma vaga lembrança). Eu acreditava na época que havia entrado em contato com uma sociedade secreta alternativa e paralela a nossa realidade mundana. Hoje já não sei, talvez só fosse loucura ou drogas. Saí da situação quando uma ex sogra minha me levou para a casa dela e ligou pros meus pais falando que havia me encontrado. Fui levado até até o psiquiatra com urgência e diagnosticado como surto bipolar. O meu médico se chamava Gandhi, nome "excelente" para alguém que está pirado.


TS: Delírios religiosos entre os carmelitas, e expulso por eles, parece uma situação icônica, digna de um romance. Conte mais sobre sua experiência no Carmelo.


FN: Foi bom, cuidava da horta, estudava espiritualidade contemplativa, tinha momentos sublimes de oração profunda, uma amizade sincera com os frades, missa diária... o que conheceu foi que eu parei de tomar o medicamento. Já estava estabilizado a uns dois anos. Parei porque entrei em paranoia que não poderia tomar remédios e ser carmelita. Não deu outra, visitas de Santa Elisabete da Trindade, fogos debaixo de porta, barulho de casco de bode, estátua de nossa senhora falando comigo, anjos voando no céu, sensação de levitação, euforia... logo eles perceberam, pois um amigo que foi comigo e sabia da minha condição contou pra eles. Dizem que eu quis bater em um frade, mas isso não lembro. Só sei que quando voltei ao meu normal eles simplesmente me recomendaram tentar outro lugar. Essa é a história do dia que fiz um fuzuê num convento carmelita.


TS: Você manifesta uma visão muito pessimista quanto ao trabalho do escritor. O que esperava desta carreira antes dela pôr seus pés-no-chão?


FN: O que eu esperava? Nem sei. Acho que admiradores. Não de mim, mas da arte que fiz. Não esperava dinheiro ou fama, isso pouco me importa. Me importava ser elogiado, um "bom trabalho", uma inserção nessa sociedade que me sinto tão deslocado. Sobre ser pessimista, eu sou bastante. Paranoico e neurótico também (riso). É que escritor é diferente de outro ofício que te garante uma renda desde o início, mesmo que baixa, e uma carreira. Você deve ser escritor não esperando nada, pois normalmente vai ser nada que você vai ganhar. Até mesmo se for pra ser um escritor comercial, são tantas variáveis e jogos sociais que é difícil prever onde você estará em 10 ou 20 anos. Ainda pior é você querer escrever algo não-comercial! Ou o reconhecimento vem depois da morte ou prepara a saliva pois vai ter que babar muito ovo (e as vezes nem isso vai resolver). Alguns tentam se vincular a partidos, pode tentar se quiser, mas isso vai aprisionar sua arte a uma cartilha. É tipo starter Pack de direita ou esquerda. Você adota ele e fica mais fácil você ser publicado, pois por causa do vínculo político (não existe povo mais unido e traíra que os envolvidos com politica) você já terá acesso a editores, editoras e etc.


Thiarles Soares: O que aconteceu com o livro “Cotidianus”? E por que cópia barata, um plágio ou cópia de enredo?


Felipe Nomura: Cotidianus tinha o estilo do Lourenço mutarelli. Gosto muito do mutarelli, me vejo muito nele. Na época tinha lido O Cheiro do Ralo. Li umas 4 vezes e cotidianus copia muito da voz do narrador desse livro. A história era bem original até, por isso não falarei sobre. Vai que um dia eu queira aproveitar a premissa? Acho que aprendemos a escrever literatura lendo bastante literatura. Aos poucos se forma seu mapa de influencias e você vai se definindo em meio a descobertas. Por isso o importante é nunca se prender demais a algo. Eu leio clássicos universais, mas também leio modernistas brasileiros e porque não ler contemporaneos também? Odeio esse povo chato que leu Homero, Camões e Dante e acha que já é o suficiente para ser escritor. Veja, para saber o que é bom ou ruim, deve-se ler não só os maiores que marcaram a história, mas também os menores. É como um arqueólogo que se contenta com o crânio perfeito que achou, esquecendo que ele está sob a superfície de metros e metros de crânios de outros ossos triturados. Pra ter a literatura excepcional, deve-se ter a literatura medíocre. Para ter alta cultural, deve-se ter a média cultura. E quem disse que só queremos alta cultura? As vezes queremos a média, e tá tudo bem. No final, é tudo retornar ao pó, faça o que tu queres!


TS: “Acredito que não se escolhe ser escritor mas se é escolhido”. O que é ser escritor para você?


FN: Ser escritor pra mim é patologia. É esquizotipico. É ser um outsider. E como tal, ele se expressa da própria maneira a sua estranheza. É uma doença, talvez, espiritual ou mental. Não sei porque decidir ser escritor, li muitas biografias pra tentar entender e no final só conclui que todo escritor tem algo de insanidade, solidão e rejeição que gera necessidade de admiração. Porque alguém decide se fantasiar de personagem de anime? Porque existe furrys? Porque todo ano as pessoas comemoram o campeão do brasileirão? No final, só estamos de passagem buscando a melhor distração possível pra uma vida com ausência de Deus apos sermos expulsos do paraíso. Tem gente que gosta de sinuca, cerveja, amendoim e cigarro paraguaio. Tem gente que gosta de escrever. Cada louco com sua mania.


TS: Acha que o trabalho de escritor recompensa pouco?


FN: A primeira recompensa é terminar de escrever. A segunda é terminar de revisar.  Dá uma descarga de dopamina muito boa. Depois tem a recompensa de achar editora, assinar o contrato e finalmente ter o livro em mãos. Depois é uma broxada e vamos pro próximo livro. Não tem recompensa. Tem seu prazer pessoal, íntimo, de completude de um trabalho. Como disse, essa recompensa você poderia ter ao terminar de construir um barco dentro de uma garrafa. É a mesma ideia.


Thiarles Soares: Você diz que “ninguém lê neste país”, mas há muitas pessoas que escrevem livros e os vendem aos milhões, quer eles ensinem a manter os negócios em dia, a saúde mental, etc. Não acha que o ramo da escrita é como todos os outros um produto do mercado?


Felipe Nomura: Acho. Acertou em cheio. Mas acho que quis dizer que ninguém lê nesse país "literatura". E também, é compreensível. Estamos competindo com escritores de todos os tempos e com livros traduzidos de todos os países. É um mercado bem competitivo e se você não tem um marketing forte, porque alguém vai querer ler a droga do teu livro? Olha quanta coisa tem pra ler. E isso que não falamos do cinema, das séries, dos animes, do YouTube, do tik tok... é uma arte quase morta pro povão ( a literatura). Você no final tá escrevendo pra nichos, ou as vezes nem isso. Tudo se resume ao seu marketing pessoal, ao peso da editora que te publicou e talvez a sua inclinação política... prostituição, basicamente.Mais uma vez estou sendo pessimista? Peço desculpas...


TS: Falando de sua experiência literária, quais são os seus autores preferidos?


FN: A pergunta que todo escritor gosta de responder! Veja, eu poderia citar estrangeiros, mas seria mentira. Meus favoritos são todos brasileiros. A começar pelo rei da literatura brasileira, Machado de Assis e o príncipe da literatura brasileira Lima Barreto. Tudo começa por eles. Depois temos os modernistas. Veja, temos pouca história literária. Muito breve, se for ver o que tem de mais original e de qualidade no Brasil. Gosto muito de José Lins do Rego, apesar de não conseguir imitar o que ele faz. Li boa parte da obra de Érico Veríssimo, o que me infectou significativamente no meu estilo. Clarice Lispector por muito tempo é minha musa literária e seu livro Maçã no Escuro é uma das melhores coisas da literatura brasileira. Antônio Callado é um escritor pouco valorizado e de muito valor. Guimarães Rosa é uma referência também (principalmente os contos). Octávio de faria é inegável para mim, até mesmo em suas premissas. Autran Dourado é um dos meus favoritos-mor. Adonias Filho, Márcio Souza, Orígenes Lessa, Jorge Amado, Lúcio Cardoso, Raduan Nassar, Dyonélio Machado, Raimundo Carrero, Graciliano Ramos e João Gilberto Noll são outras figuras que me influenciaram. Estou apaixonado pela obra de Campos de Carvalho, Murilo Rubião e José J. Veiga (e estou lendo tudo deles). Minha última descoberta na estante que tenho em casa foi Osman Lins. Um amigo me falou de tal e me instigou a ler os dois livros que tenho dele. Um gênio! Mas se pudesse escolher apenas um escritor pra falar de minhas preferências eu citaria o tão pouco falado Cornélio Penna, um gênio esquecido no ostracismo. Acho o que ele fez na literatura e sua climatização algo incomparável e tem em suas 4 obras uma extrema coerência e coesão.


TS: Tem um livro de cabeceira?


FN: No momento estou na cabeceira com Nove, Novena de Osman Lins, Grande Sertão: Veredas e A Lua Vem da Ásia de Campos de Carvalho... Mas se quer saber no sentido de um livro que leio várias vezes, diria Brás Cubas de Machado, Fronteira de Cornélio Penna, Maçã no Escuro de Clarice Lispector, Quarup de Antônio Calado, Olhai os Lírios do Campo de Érico Veríssimo, Opera dos Mortos de Autran Dourado. São livros que sempre revisito, dou uma folheada, fico me perguntando por horas como eles conseguiram fazer aquilo. Obras que realmente gosto de estudar. Diria até que os livros que estão na cabeceira nesse momento vão se tornar também obras do tipo: eternos na cabeceira.


Thiarles Soares: O que teria lido antes depois que leu e gostou?


Felipe Nomura: Eu acho que teria lido Campos de Carvalho na adolescência. Eu ia adorar ter conhecido ele. Thomas Pynchon também, acho que eu ia pirar demais.


TS: Você se considera um autor pós-modernista?


FN: Talvez. Não sei. Talvez não em plenitude, mas em processo. Como minhas referências são puramente brasileiras, sendo eu um Policarpo Quaresma, digo que a literatura brasileira já começou moderna, nunca foi tradicional, sendo a nossa tradição a pura ruptura da tradição europeia. Desde Machado (ou tem como negar que suas narrativas são completamente não-ortodoxas?) somos assim, meio esquisitos. Ironia, metaficção, intertextualidade, disruptura cronológica, fragmentação... tá tudo na raiz de nossa literatura. Pega desde Machado até sei lá, João Gilberto Noll. Nossa literatura é feita disso tudo, é o tempo todo se reinventando. Nossa tradição é subverter, parafraseando Raimundo Carrero.


TS: No seu livro “Sacrário Vazio”, percebemos uma certa ligação com o seu próprio passado. Há experiências reais ali figuradas?


FN: Eu meti textos que escrevi na época que estava louco no meu livro de estreia, tem tudo haver com a literatura brasileira! Talvez isso seja pós-modernista, mas quis expressar a visão real de alguém em surto de mania. E consegui, fiz o efeito desejado. Meu livro seria ótimo para estudos de caso. Fora isso, boa parte é ficção pura e vai do leitor cruzar os fatos com a fantasia. No final ser escritor é inventar a própria história.


TS: O tema da degeneração juvenil parece ser um tema bastante caro a você, talvez pela experiência própria na adolescência. Como vê o problema da degeneração social juvenil hoje no Brasil, acha que há problemas ligados à cultura ou anticultura?


FN: Todos degenerados! Meu problema é que tá todo mundo à base de morfina. Não crítico apenas a degeneração, mas qualquer forma de bolha aprisionante. É batido falar de inculta e cultura. Poderia fazer um texto bem longo sobre a música, o cinema e tudo mais que está se degenerando. No meu próximo livro falo até mesmo de uma degeneração do espiritual (com muito sarcasmo). Por esse motivo sou avesso a tudo que não seja os livros e minha esposa e filho. O resto me entedia, me dá enfado, me confunde e me irrita. As pessoas reclamam das coisas, mas os problemas são elas mesmas e não as situações externas. Tá todo mundo amortecido pela própria imagem, rasos em seu espelhos e com opiniões miméticas repetitivas. Eu quero fugir da Samsara social, essa roda infinita de discussões repetitivas que passa era e volta era, são sempre as mesmas. O mundo gira, a Cruz permanece firme. Só isso que importa. As ações do tempo já não me falam nada e me deixam com nada além de uma vontade enorme de rir e debochar. Se a juventude está degenerada? Sem dúvidas! Deveriam parar de ir em festas, usar drogas e ver hentai? Também! Mas não sou salvador da pátria, contando que não venham botar uma arma na minha cabeça, cada um no seu canto. Gente degenerada sempre existiu e sempre vai existir, ainda mais entre os jovens. Só desejo que não façam seus pais chorarem como eu fiz e entendam que por mais que a vida seja uma merda, pelo menos que você esculpe um rei de bosta.


TS: Qual mensagem para autores que queiram começar a carreira literária?


FN: Comece e não espere nada. Se doa gratuitamente, seja apaixonado por aquilo. Ame a literatura como se fosse seu primeiro amor. Esse primeiro amor vai te dar um pé na bunda, daí vai de você desistir ou continuar amando ainda.


Thiarles Soares: Queremos agradecer a você, Felipe Nomura, pela sua participação nesta entrevista, que cremos será marcante para nossos atuais e futuros leitores. Sentimo-nos gratos e desejamos uma boa carreira literária para você.


Felipe Nomura: Eu que agradeço. Foi mal se falei alguma merda. Talvez me arrependa depois. Se um dia alguém ler isso lá no futuro, saiba que essas respostas estão dentro de um tempo e como ser humano sou mutável. Se tiverem dúvidas de algo que falei aqui, me pergunte mais tarde. Posso estar estudando Santo Tomás de Aquino ou Deleuze e Guatarri. Talvez finalmente tenha lido Ariano Suassuna. Talvez esteja morto, o que não é tão ruim, pois adoro dormir. Se me ver na rua, seja meu amigo e me cumprimente. Eu vou responder mal, meio tímido, mas vou gostar. Reze por mim e pela minha família (principalmente se for ateu). Rezar o que? Reze que eu não perca a fé, a esperança e a caridade, pois sou fraco e falho. Ademais, obrigado, adoro entrevistas e me diverti muito respondendo.



 
 

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